Texto cheio de spoilers. Leia por sua conta e risco.
Beyond the Wall é o episódio em que Game of Thrones se torna refém de sua própria armadilha. Depois de matar muitos de seus personagens centrais sem qualquer remorso ao longo das últimas temporadas, evitando assim vários dos lugares-comuns da fantasia medieval enquanto gênero, agora precisa inventar maneiras plausíveis de manter os sobreviventes vivos. Afinal, há ainda uma temporada inteira para acontecer e alguém precisa fazer alguma coisa em relação aos zumbis da neve que marcham rumo ao Sul de Westeros. Já é tarde demais para apresentar um novo herói que poderá salvar a humanidade.
Ainda assim, é estranho notar como uma série que nunca teve qualquer problema para cortar excessos agora se mostra tão retraída. O grupo de valentes guerreiros que vai até o Norte da Muralha para uma missão desesperada para capturar uma das criaturas (“wight”, do original em inglês, não possui tradução direta. Eles são os zumbis de gelo de fato que se diferem dos Outros – tradução de “White Walkers”, que são humanos vivos transformados, como o Rei da Noite) e levar para Cersei Lannister (Lena Headey) poderia facilmente ter perdido alguém como Tormund Giantsbane ou Jorah Mormont (Kristofer Hivju e Iain Glen).
Claro, como escrevi no primeiro parágrafo, não dá para simplesmente matar personagens importantes como Jon Snow ou Daenerys Targaryen (Kit Harrington e Emily Clarke). Todavia, ao não se comprometer em eliminar figuras do segundo escalão, ainda que proeminentes como os já citados Tormund ou Jorah, Game of Thrones perde um importante senso de urgência. O espectador, ao longo das primeiras temporadas, era deixado em estado de constante alerta por temer que seus atores favoritos poderiam deixar o elenco a qualquer momento.
Difícil saber em que medida isso é culpa do fato da série ter perdido relação com os livros de George R.R. Martin. Afinal, ainda que seja possível vermos mais mortes na versão impressa, a armadilha se mantém a mesma. Game of Thrones existe como uma tentativa de perverter o cânone da fantasia, uma operação mais sofisticada do que simplesmente incluir sexo e violência gráfica em um gênero que é tradicionalmente asséptico. A questão, então, é como fazer com que essa trama seja concluída sem recair nos clichês que são caros a esse gênero?
O episódio desta semana deixa claro que David Benioff e D.B. Weiss, responsáveis pela série televisiva, não conseguiram encontrar essa resposta na subversão do gênero, ainda que talvez Martin consiga. O episódio abraça justamente a lógica de campanha, com uma missão específica, mais ou menos como uma versão desbocada da Sociedade do Anel, de O Senhor dos Anéis (Lord of the Rings, 2001, 2002 e 2003). Talvez seja um sinal de que daqui para a frente veremos mais e mais amor idealizado, atitudes heróicas e bem contra o mal. Ou seja, tudo o que Game of Thrones parecia militar contra.
Isso também não quer dizer que Beyond the Wall seja um episódio necessariamente ruim, ou mesmo dissonante em relação ao corpo de Game of Thrones. Mesmo que a missão de Jon Snow seja, para todos os fins, tão estúpida quanto é um clichê narrativo, ela é uma oportunidade para que personagens que passaram muito tempo afastados possam conversar e colidir sua visão de mundo. O melhor deles é o diálogo existencialista entre Jon Snow e Beric sobre os porquês de estarem lutando, ou mesmo os porquês de estarem vivos e, afinal, se isso sequer importa.
Ainda que as sequências de batalha sejam confusas, diferente da elegância didática de The Spoils of War, as câmeras panorâmicas de Alan Taylor – que volta para Game of Thrones depois de Thor: O Mundo Sombrio (Thor: The Dark World, 2013) e O Exterminador do Futuro: Gênesis (Terminator Genisys, 2015) – ajudam a dar a real dimensão da jornada dos heróis. Uma pena que ela seja destroçada pelas linhas de tempo que beiram o conflitante, mal conseguindo se conciliar harmonicamente.
A discrepância temporal chama mais atenção por atender à um Deus ex machina – recurso de roteiro do teatro grego em que os deuses, trazidos por um guindaste, interviam na história de forma arbitrária – ainda inédito em Game of Thrones: o grupo desesperado é salvo no último minuto por Daenerys e seus dragões. Só para perder um deles, Viserion (batizado em nome do irmão traidor de Daenerys, curiosamente) para o Rei da Noite, deixando Jon Snow para trás, que, por sua vez, será resgatado por um ainda mais improvável Benjen Stark (Joseph Mawle). Ou seja, um Deus ex machina duplo.
Vejam: é possível encontrar sentido nisso tudo. É importante que o Rei da Noite tenha um dragão. Ele, assim, se torna tão poderoso quanto Daenerys. É importante para a Mãe dos Dragões perder um dragão. Ajuda em sua humanização, tornando o personagem mais interessante em um momento em que estava mergulhando em crueldade. Também é importante o sacrifício de Jon Snow, não apenas para se contrapor ao diálogo entre Daenerys e Tyrion Lannister (Peter Dinklage) diante da lareira, mas também para justificar o (incestuoso?) amor entre os dois governantes.
A questão é que o roteiro se torna um exercício teleológico, no qual os fins ditam os meios. Com isso Game of Thrones perde sua capacidade de surpreender, abraçando mais profundamente sua vocação melodramática – que, não se engane, sempre esteve lá.
Esta temporada se encerra com mais um episódio de mais de um hora. Tempo suficiente para justificar as más decisões desta temporada e manter a chama viva para a próxima, se assim quiser o Deus da Luz.