Os Oito Odiados

Os Oito Odiados

A lenta sucessão de paisagens nevadas do Wyonming sugere que Os Oito Odiados (The Hatefull Eight, 2015) é um filme anormalmente árido em relação ao cinema de Quentin Tarantino. Assim como nestes cenários não há humanos no filme, relação de sentido coroada com a estátua do Cristo crucificado coberta de neve. A diligência que leva os personagens vai para um lado; Jesus, entre o amargurado e o envergonhado, olha para outro.

Os Oito Odiados é fruto do olhar agudo de Tarantino para as relações sociais nos EUA contemporâneo. Suas escolhas estéticas reforçam isso ao criar uma alegoria para o ódio de classe, de raça e de gênero perpetuados através dos séculos. Ele colide as estruturas do road movie com o faroeste (os dois subgêneros mais americanos possíveis) ao evocar No Tempo das Diligências (Stagecoach, 1939) e seu próprio Cães de Aluguel (Reservoir Dogs, 1992): na medida em que a trama evolui fica mais clara sua relação com a história estadounidense, um conto de horror escrito com sangue.

Há, claro, uma certa auto-indulgência no gesto de se colocar na outra ponta da história do grande cinema norte-americano (que teria Ford na outra). Mas este é, também, um movimento simbólico: para Tarantino o ódio é cíclico e perpétuo. Daí a ênfase no número “8” – tanto no título quanto no lembrete de que este é seu oitavo trabalho –, o símbolo do infinito em diferente posição, e daí também o retorno de tantos rostos conhecidos vindos de seus outros sete filmes.

Os oito odiosos (ou “cheios de ódio” – tradução que, penso, seria mais adequada para o “hatefull” do título original) surgem como elementos da perpetuação do ódio. Cada um dos personagens centrais da trama funciona como uma manifestação, um arquétipo do ódio arraigado na sociedade estadunidense. Por isso toda impossibilidade de diálogo culmina na violência que não é, de modo algum, aleatória, como pode parecer a princípio. O verniz de civilidade do primeiro terço – os dois primeiros capítulos – só existe enquanto eles não são obrigados a conviver no Armazém da Minnie.

O homem que espanca a mulher sempre que ela emite uma opinião; o britânico que se faz de conciliador fazendo outros brigarem entre si; o negro que não pensa ser suficiente escapar com vida de uma emboscada, tampouco simplesmente matar o oponente: precisa humilhar o adversário; os brancos sulistas que não toleram a derrota na guerra civil e o fim da escravidão; o mexicano que “usurpa” posições de “americanos legítimos”; a mulher que assume as piores características culturalmente ligadas aos homens quando está em situação de poder; as autoridades militares e da sociedade civil organizada que, na falta de argumentos, distribuem ainda mais violência.

Todos os personagens odeiam e são odiados sem preconceitos – essa, afinal, é a igualdade máxima da sociedade americana. Mas dois deles se colocam em um eixo central: a condenada Daisy Domergue (Jennifer Jason Leigh) e o caçador de recompensas Major Marquis Warren (Samuel L. Jackson), uma mulher e um negro que se cobrem de ódio para sobreviver em um mundo dominado por homens brancos. Eles foram alfabetizados pela linguagem da crueldade e do sadismo e essa é a única forma de expressão que conhecem.

O ápice chega na imagem final, onde dois homens superam o ódio mútuo abraçados em uma cama, um deles emasculado, e gargalham ao ver uma mulher ser enforcada. Tarantino faz seu amargo diagnóstico: a única coisa que supera o ódio é mais ódio. O resultado, porém, é trágico para todos os envolvidos. Sem exceção.

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Luiz Gustavo Vilela

Luiz Gustavo Vilela é jornalista formado pela PUC-Minas, especialista em Comunicação e Cultura pela UTFPR, mestre e doutorando em Comunicação e Linguagens pela UTP. Entre 2011 e 2015 foi crítico de cinema no Portal POP.

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