Pornochanchada levada a sério

Documentário Histórias que Nosso Cinema (não) Contava, de Fernanda Pessoa, revela que as famigeradas Pornochanchadas tinham bem mais que gente pelada para mostrar

Apesar das constantes demonstrações de inegável qualidade, há quem insista em afirmar que o cinema nacional é de segunda categoria, em eterno débito para com os blockbusters estadunidenses ou com o cinema de arte europeu, seja lá o que isso queira dizer na prática. Muito do preconceito encontra sua origem na década de 1970, quando a Ditadura Brasileira balanceava o endurecimento com uma nada saudável confusão entre liberdade e libertinagem. Nascia a Pornochanchada, subgênero mais brasileiro impossível, preocupado com nudez, cenas de sexo e alienação.

Pelo menos este é o clichê que ainda ligado a esses filmes e que Histórias que Nosso Cinema (não) Contava, dirigido por Fernanda Pessoa, busca – com sucesso, diga-se – desconstruir. O documentário, em cartaz na Cinemateca de Curitiba, usa imagens e sons de 27 títulos lançados ao longo da década de 70 para forçar um bem-vindo auto exame nestes trabalhos. O resultado é surpreendente em sua consciência histórica, social, política e cultural. Com as cenas isoladas e rearranjadas pela edição estas obras são capazes de demonstrar uma latente sintonia crítica com o espírito do tempo.

A primeira sequência é notadamente provocativa. “O que mais lhe interessa na história?”, pergunta um professor cheio de más intenções. “As sacanagens”, responde a aluna com voz sensual – além do quase ubíquo sotaque carioca. O que o filme de Pessoa mostra daí em diante é que “sacanagem” é um termo amplo quando aplicado à história do Brasil. Os trechos dos filmes discorrem sobre temas diversos. Desde os mais ligados ao período da Ditadura, como violência urbana, interferência estrangeira na economia, flagrante corrupção, êxodo rural e migração nordestina, censura dos meios de comunicação ou tortura como política de estado, como também temas mais gerais – mas tão importantes quanto – como moralidade, drogas, cultura hippie, cidadania, emancipação feminina ou conflito de geração.

O que Histórias que Nosso Cinema (não) Contava revela é que as Pornochanchadas usavam a malandragem, sexualidade de jocosidade como distração para que a trama pudesse ter relevância social. Afinal, se não há um caráter denuncista, como no Cinema Novo de Glauber Rocha ou no Cinema Marginal de Rogério Sganzerla, sobra apenas a nudez, o sexo e as piadas. A mesma dificuldade de perceber nuance que beneficiou estes filmes diante dos censores do governo, porém, parece ter sido responsável pelo legado maledicente deste subgênero. Esta má compreensão de como uma obra opera relações de sentido em seu discurso é um traço tão brasileiro quanto as próprias Pornochanchadas foram um dia.

Nem Pornô e Nem Chanchada

Na década de 40 o Brasil vivia seu primeiro delírio industrial cinematográfico com a Atlântida, apelidada pelo próprio Humberto Mauro como “Hollywood Brasileira”. Os sucessos vinham das comédias musicais de Oscarito e Grande Otelo em que o carnaval e malandragem eram o ponto de partida para as pequenas farsas. Surgia assim a Chanchada, primeiro gênero cinematográfico nacional por excelência, nascido da necessidade da Atlântida em atrair bilheterias, jogando pela janela toda a ambição estética e social presente no manifesto fundador da empreitada.

Chanchada, segundo a Enciclopédia do cinema brasileiro, em abordagem apoiada pelo pesquisador francês brasilianista Laurent Desbois em seu A Odisseia do Cinema Brasileiro, era uma expressão usada por críticos de maneira pejorativa. A origem estaria na palavra italiana cianciata, que seria um discurso sem sentido, vulgar e vazio. Aportuguesada, virou Chanchada. É tendência constante da crítica diminuir o tamanho do cinema mais popular, traço que vai contaminar a herdeira inglória da Chanchada, a Pornochanchada.

Em 1969, com a Atlântida em um passado distante, João Callegaro, Antônio Lima e Carlos Reichenbach assinam juntos As Libertinas, espécie de manifesto erótico com um estilo de produção ágil e barato, inaugurando o gênero que só começaria a perder o interesse do público com a chegada do cinema pronográfico europeu e estadunidense nos anos 80. Nascia a Pornochanchada e a Boca do Lixo, filhos bastardos de um insuspeito casamento entre o gosto popular nacional pelo deboche, já aproveitado pela Chanchada, e o esquema de produção guerrilheiro e experimental do Cinema Marginal.

A Pornochanchada ganha seu nome, assim como a Chanchada, de forma pejorativa pela crítica. Como se as comédias da Atlântida tivessem sido apenas apimentadas pelo sexo. Ledo engano. O tipo de humor e esquema de produção colocam a Chanchada e a Pornochanchada em espectros absolutamente opostos da comédia. Ao mesmo tempo, por não conter cenas de sexo explícito, não caberia o termo “porno”. O rótulo ilegítimo ajudou a solidificar a impressão de que este era um cinema sem substância, voltado apenas para o prazer masculino e objetificação do corpo feminino.

Contrabando

Martin Scorsese em seu documentário Uma Viagem Pessoal Pelo Cinema Americano demonstra como alguns diretores usam a linguagem cinematográfica para criticar ou denunciar problemas pelos quais o mundo passa. Filmes inicialmente levianos escondem profundas possibilidades de leitura. Ele chamou esses cineastas de contrabandistas, pela habilidade de disfarçar sua mensagem. O que Histórias que Nosso Cinema (não) Contava faz, de certa forma, é demonstrar que há muito de contrabando nas Pornochanchadas brasileiras.

Ao fazer com que os filmes examinem a si mesmos, Histórias que Nosso Cinema (não) Contava revela um cinema cru e delirante, imenso mesmo em (ou, por causa do) seu déficit técnico. Uma colagem tresloucada entre certo neo realismo e certo expressionismo que só faz sentido em um país como o Brasil, tão capaz de abraçar suas contradições inerentes. Tudo em uma embalagem de autoconsciência que impressiona quando apresentado pelo olhar de Fernanda Pessoa.

O trabalho da diretora foi hercúleo. Muito pouco restou intacto dos mais de 90 filmes que eram despejados todos os anos nos cinemas brasileiros. Pessoa conseguiu recuperar mais de 150 deles, de onde partiu a seleção final dos 27 que compõem seu documentário. Ao longo da exibição fica óbvio que não estão lá necessariamente os melhores ou mais conhecidos. Ou ainda os melhor preservados, já que algumas cópias são claramente de baixa qualidade. Foram escolhidos, ao contrário, os que melhor representam esta ideia de que as Pornochanchadas tinham mais a apresentar do que a mera exploração do nu e do sexo.

Mesmo sem demarcação específica, não é difícil identificar os blocos temáticos. Funciona bem pela operação de sentido de fazer com que os filmes revelem uns aos outros e a si mesmos pela simples justaposição e rearranjo. O site oficial do filme demonstra parte do processo de Fernanda Pessoa, com os filmes listados ganhando as seguintes tags: Era de aquarius; Êxodo rural; Indústria Cultural; Milagre econômico; Metalinguagem; Relação de classe; Repressão; Resistência; Revolução sexual; e Valores e família tradicional brasileira. Não é difícil notar, porém, que há bem mais discurso nestes filmes.

Com isso, Histórias que Nosso Cinema (não) Contava não apenas reabilita uma dimensão oculta na Pornochanchada, a da consciência social, como também demonstra que aqueles corpos dispostos diante das câmeras também poderiam atender a um discurso político e não mero prazer do olhar. O que vale tanto para os corpos masculinos, quanto femininos. Sua objetificação atende a um propósito maior. No mínimo, o de denunciar uma classe abastada que abusa dos corpos dos imigrantes e pobres dos grandes centros.

É, afinal, como diz um personagem de um dos filmes: “se rabo pagasse imposto, a mulata bunduda tava falida”. Mesmo na mais popularesca produção cultural brasileira, é impossível dissociar sexo e política, piada e protesto, corpo e discurso. Esta confusão é parte de nossa identidade cultural.

Publicado originalmente na edição impressa da Gazeta do Povo.

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Luiz Gustavo Vilela

Luiz Gustavo Vilela é jornalista formado pela PUC-Minas, especialista em Comunicação e Cultura pela UTFPR, mestre e doutorando em Comunicação e Linguagens pela UTP. Entre 2011 e 2015 foi crítico de cinema no Portal POP.

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