“Walt nos Bastidores de Mary Poppins” confronta literatura e cinema

Walt nos Bastidores de Mary Poppins

A lista com as piores versões nacionais de títulos de filmes de 2014 é coroada com “Walt nos Bastidores de Mary Poppins”. Menos pela frase tosca em sua construção e mais por mostrar uma completa falta de compreensão do mote da trama. O filme não é sobre Walt Disney, vivido por Tom Hanks, mergulhando no universo de Mary Poppins, criada por Pamela Lyndon Travers, interpretado por Emma Thompson. É exatamente o contrário.

A trama é apresentada em duas linhas narrativas. Vemos tanto a infância da escritora, focada na sua relação idealizada com o pai, vivido por Colin Farrell, quanto o desenvolvimento do roteiro da adaptação de “Mary Poppins”, que tirou a Senhora Travers – como gosta de ser chamada – de sua amada Inglaterra para a ensolarada Califórnia, onde trabalhou como consultora criativa. A primeira, infelizmente, toma tempo demais da tela, especialmente na primeira metade, mas a segunda é brilhante.

O brilhantismo, claro, é menos por conta do roteiro do que pelo elenco. Emma e Hanks são ótimos conseguem deixar claro como seus personagens são, de certa forma, espelhos refletindo um ao outro. Disney, aqui, é um homem amável na superfície, mas de temperamento forte e de difícil trato, enquanto Pamela é construída como irritante e intransigente, mas dona de um coração de ouro. O que acaba refletindo a questão mais importante dentro do filme: o bom e velho antagonismo livro versus filme.

A Senhora Travers representa o purismo da narrativa literária – daí a tinta carregada em sua introspecção e apreço pelo rigor linguístico. E milita por isso. Especialmente na hora de fazer os envolvidos no trabalho de adaptação entenderem quem são os personagens que ela criou. Mas, ao mesmo tempo, mostra um desconhecimento absoluto sobre a narrativa cinematográfica – as discussões sobre a cena dos pinguins ou sobre os méritos de Lawrence Olivier sobre os de Dick Van Dyke são hilárias.

É curioso notar como o filme parece, o tempo todo, advogar para o lado da literatura, mas, na verdade, é o amplo alcance e linguagem quase universal do cinema que é sua própria tábua de salvação. Essa é a função de Disney na narrativa, coisa que Hanks defende bem em seu diálogo em relação aos filmes. Ele é cor, som, explosões e tudo mais que compõe o espetáculo cinematográfico.

O que não quer dizer que a argumentação da autora não tenha méritos. Ao insistir pelos personagens, ela demonstra que a base do cinema está na literatura. Independente de qualquer coisa. O que nos devolve à questão do título. O original resume muito bem o tema central do filme. “Saving Mr. Banks”, ou, traduzindo livremente, “Salvando o Senhor Banks”, é bem explícito em mostrar que o que ela queria era preservar a figura do pai das crianças do romance – motivo pelo qual o filme “Mary Poppins” funciona até hoje narrativamente, inclusive.

No fim das contas, há uma questão maior em ver o filme para quem conhece um pouco dos bastidores da cultura pop por conta da forma como o roteiro mostra Walt Disney. Um homem que ganhou a vida recriando obras sem direitos autorais, cujo legado empresarial envolve a defesa louca da proteção de suas criações intelectuais, passando 20 anos querendo comprar os direitos do trabalho criativo de outra pessoa. Fora, claro, seu conhecido machismo e anti-semitismo. Mas, se isso fosse aparecer, não dava um filme da Disney.

Publicado originalmente no Portal POP.

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Luiz Gustavo Vilela

Luiz Gustavo Vilela é jornalista formado pela PUC-Minas, especialista em Comunicação e Cultura pela UTFPR, mestre e doutorando em Comunicação e Linguagens pela UTP. Entre 2011 e 2015 foi crítico de cinema no Portal POP.

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