O fracasso de Cleópatra (1963) colocou em cheque a grande era dos estúdios de Hollywood. Os épicos e musicais, caros e trabalhosos, já não se conectavam com o público da mesma forma. Curiosamente, X-Men: Apocalipse (X-Men: Apocalypse, 2016), mega produção baseada em quadrinhos – sub-gênero herdeiro direto dos épicos e musicais – começa no mesmo Egito Antigo do clássico estrelado por Elizabeth Taylor. Não estou aqui defendendo que a nova aventura dos mutantes será o fracasso de bilheteria que porá fim aos filmes de herói de orçamento inchado – talvez seja Batman vs Superman: A Origem da Justiça (Batman v Superman: Dawn of Justice, 2016), mas a opulência da produção e a escala das imagens sugerem algumas semelhanças.
X-Men: Apocalipse sofre de uma indefinição profunda em relação ao tipo de filme que quer ser. Quando é cinema de ação, por exemplo, é incrível. A cena de Mercúrio/
Peter Maximoff (Evan Peters) é ainda mais interessante e empolgante que a do filme anterior, que já era bem divertida. A sequência envolvendo um certo mutante canadense raivoso também é brilhante, já antecipando o tom sangrento que sua próxima deverá ter, pegando carona no sucesso de Deadpool (2016). Mas como conciliar estes bons momentos com a comédia adolescente e com o novo (e desnecessário) drama pessoal de Erik Lehnsherr/Magneto (Michael Fassbender)? Ou ainda – e principalmente – com o discurso social de inclusão racial e de gênero que permeia todos os (bons) filmes da cinessérie?
O exemplo mais radical são os diálogos dos jovens mutantes no avião sofrendo com a expectativa pela batalha final com o vilão. Depois de Mística/Raven (Jennifer Lawrence) tranquilizar seus inexperientes colegas – o filme transforma a personagem na versão mutante e superficial de sua Katniss Everdeen –, Mercúrio diz que ainda mora com a mãe, assumindo seu lado “totalmente perdedor”, em suas próprias palavras. É possível alegar que ele queira aliviar a tensão, mas os momentos parecem uma colagem de dois filmes diferentes, sem relação entre si. Este estranhamento é o tom de boa parte de X-Men: Apocalypse.
De toda forma, o coração do filme reside justamente no seu discurso de inclusão, de onde os arcos dramáticos partem em vaga ressonância. Desde a jaula de luta entre mutantes, ecoando as lutas de mandingo entre escravos, até o bullying sofrido por Scott Summers/Ciclope (Tye Sheridan), passando pelo novo trauma de Magneto, o real fio condutor da narrativa. Em algum lugar de X-Men: Apocalipse, soterrada sob as referências aos anos 80 e sequências de ação, há uma argumentação conectando estes personagens sob a perspectiva da perseguição racista. O que nos leva a Apocalipse/En Sabah Nur (Oscar Isaac).
O vilão central de X-Men: Apocalipse é o primeiro mutante. Seu poder original, indica o filme, é poder “reencarnar” em outras pessoas. Se o fizer em outros mutantes irá absorver e acumular seu poder. A semelhança com mitos divinos faz com que ele se creia um Deus, destinado a destruir o mundo dos humanos criando um lugar onde os seus “filhos” possam reinar soberanos. Ele é, afinal, um supremacista, alimentado pelo ódio da opressão sentido na pele por seus quatro cavaleiros, Anjo, Psylocke, Tempestade (Ben Hardy, Olivia Munn e Alexandra Shipp) e Magneto, que acaba confrontado pela mais dura questão: um Hitler mutante (ou judeu, ou negro, ou gay) é melhor do que a versão ariana e nazista?
A ameaça de Apocalipse está em sua certeza inabalável de superioridade, o que lhe garante, pensa, não apenas direitos e privilégios como autoridade sobre o resto do mundo. Ganha destaque a atuação de Oscar Isaac, que dá ao vilão uma dimensão transcendente, de força da natureza. Ele não se enfurece ou se alegra, não pragueja ou comemora. Há apenas a certeza de que seu caminho está definido e que será pavimentado com os corpos de seus inimigos. Sua crueldade não nasce do sadismo, mas da indiferença para com aqueles que considera menores.
Apocalipse é o maior vilão do universo mutante por representar o perigo real de um ser superpoderoso com delírios totalitários. Ele justifica a paranoia do governo por controle encarnada pela figura do Senador Kelly (Bruce Davison) no longínquo X-Men: O Filme (X-Men, 2000) ou a fascinação por um exército mutante de William Stryker (Brian Cox, Danny Huston ou Josh Helman, dependendo do filme), o “criador” do Wolverine. É provavelmente daí que parte a megalomania de X-Men: Apocalipse. O maior vilão mereceria, portanto, o maior filme. O pecado foi considerar “maior” um conceito absoluto, não relativo, assumindo mais a megalomania de Apocalipse do que suas implicações sociais e políticas.