Livre

Livre

O último filme de Jean-Marc Vallée, Clube de Compras Dallas, já trazia o tom de história real como base para uma revelação metafórica. O que, no filme em questão, significou colocar um cowboy machão e homofóbico se descobrindo contaminado pelo vírus HIV. Isso, nos anos 80, implica em vestir a pele do excluído, já que a Aids era conhecida como “a doença gay”. Livre, o trabalho seguinte do diretor, vai mais ou menos pelo mesmo caminho.

As metáforas são ainda mais óbvias aqui, na verdade. O que não quer dizer que sejam menos interessantes ou poderosas. Começando pela própria premissa básica: acompanhar a intensão (teimosia? insistência?) de Cheryl Strayed (Reese Witherspoon) de percorrer a Pacific Cost Trail, que liga a fronteira do México à do Canadá, a pé, somando 1.770 km. Afinal, sempre que um personagem tem um caminho a percorrer, o trajeto é a simples manifestação física do que ele precisa passar rumo à iluminação.

Se o caminho é a metáfora mais aparente, não é a única. Outras vão se enfileirando, como a enorme mochila, que Cheryl mal consegue erguer, cheia de coisas que considera indispensáveis para seu conforto, mas que não têm uso prático em sua jornada. O peso da bagagem simboliza claramente a culpa que ela carrega sem motivo, que serve apenas para dificultar sua caminhada. O mesmo vale para suas botas, elemento central da primeira cena. Mais no meio do filme descobrimos que ela estava usando um número menor. Ou seja, usando um calçado que era para outra pessoa. Quando os seus chegam, na metade da viagem, ela começa a percorrer o seu próprio caminho de fato.

Por conta da premissa, Livre é muito comparado com Na Natureza Selvagem, neo-clássico dirigido por Sean Penn. Mas as aproximações param na bela fotografia e no fato de haver um personagem que escolhe um novo nome e busca nas paisagens naturais americanas a auto-iluminação. Mas Alex Supertramp, o jovem vivido por Emile Hirsch no filme de 2007, está se afastando de tudo o que considera uma farsa social. Ele busca a verdade sobre si mesmo e sobre o mundo, rejeitando a interação humana, e morre logo depois de perceber em que esteve errado.

O fim marcado para a viagem é apenas a primeira diferença entre Livre e Na Natureza Selvagem. A jornada de Cheryl é a do encontro. Primeiro consigo mesma e depois com sua própria história e erros. Só então ela pode se abrir para voltar a se relacionar com outras pessoas. O roteiro, adaptado por Nick Hornby, é muito esperto em incluir nesses momentos pequenos flashes do passado dela que vão aparecendo de forma fragmentada e não-linear. Eles nos ajudam a juntar aos poucos as peças do quebra-cabeças que é sua personalidade, especialmente a devastação emocional que foi a morte de sua mãe, Bobbi, defendida lindamente por Laura Dern.

Por ter uma mulher em seu centro, Livre não teria como escapar de ser um comentário sobre a questão feminina. Vallée e Hornby resolvem mergulhar fundo na questão. Cada encontro de Cheryl com um homem é marcado pela confirmação ou quebra de um estereótipo. O machão caipira ameaçador, por exemplo, aparece tanto como um salvador quanto como um possível estuprador. Mas, como todo o filme, o tom é geralmente leve e anedótico, como no encontro com um grupo mais jovem que insiste que a caminhada dela é mais fácil por ser mulher, afirmação que todos os momentos do filme até então contrariam veementemente.

Livre corria o risco de ser um filme mediano com bons momentos, que viriam das partes mais engraçadinhas da viagem, como o já citado peso da mochila ou o esperado abandono da higiene pessoal. Havia ainda a possibilidade de ser jogado para baixo por conta do pesado passado da personagem, que chega ao fundo do poço e ainda cava mais alguns metros. Mas graças à formação cultural de Cheryl (enquanto autora do livro), que recheia a viagem e o livro de citações literárias e musicais lindamente preservadas pelo roteiro de Hornby e traduzidas visualmente por Vallée, e ao trabalho de Whiterspoon, que dá uma leveza ímpar para sua atuação, o resultado é um filme que corre o risco de ser revisitado pelos próximos anos pela cultura pop, se tornando mais e mais importante. Mais ou menos como vem acontecendo com o próprio Na Natureza Selvagem.

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Luiz Gustavo Vilela

Luiz Gustavo Vilela é jornalista formado pela PUC-Minas, especialista em Comunicação e Cultura pela UTFPR, mestre e doutorando em Comunicação e Linguagens pela UTP. Entre 2011 e 2015 foi crítico de cinema no Portal POP.

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