Garota Exemplar

Garota Exemplar

A épica abertura de Anna Karenina, clássico de Tolstoi, se aplica muito bem à Garota Exemplar: “Todas as famílias felizes são iguais. As infelizes o são cada uma à sua maneira”. Abro esse texto com essa frase porque os Dunne, que estão no centro da trama do filme, são infelizes de um jeito particularmente único. O resultado é um thriller que da mesma forma encontra poucos pares na história do cinema. Especialmente o contemporâneo.

O filme adapta o livro de mesmo nome escrito por Gillian Flynn, que também cuidou do roteiro. O enredo permanece o mesmo: no dia do quinto aniversário de casamento do casal, Amy (Rosamund Pike) desaparece. O que deixa seu marido, Nick (Ben Affleck), no centro de uma trama se alterna entre caso policial e espetáculo midiático. Aos poucos vamos sabendo mais e mais sobre cada um dos dois, o que não apenas muda os rumos da história como também a nossa percepção sobre os personagens. O que é o grande trunfo da produção.

O responsável por fazer isso funcionar é, sem dúvidas, o diretor, David Fincher. Porque não demoramos muito para perceber que por trás dos sorrisos e do jeitão galante de Nick ele é um completo babaca, e que Amy é bastante dissimulada, perversa até, o que busca esconder atrás de uma imagem de filha e esposa perfeita. Isso envolve não apenas o belo trabalho de atuação (coordenado pelo diretor), mas a forma como temos contato com os personagens: à conta-gotas.

Isso é importante porque Garota Exemplar, no fundo, é mais sobre como nos posicionamos em relação ao que vemos do que sobre o desaparecimento de Amy e o efeito na vida das pessoas envolvidas. E Fincher joga com isso – com a nossa percepção – o tempo todo nos fazendo mudar de lado à medida em que se desenrola, de forma calma e com precisão cirúrgica, o novelo da trama. O efeito final é arrebatador, justamente por deixar claro que não existem inocentes. O filme em si é um jogo de espelhos, que funciona também como espelho do mundo em outros níveis.

Ainda assim o que se vê aqui não é um estudo de personagem, como pode parecer à primeira vista. Até existe algo nesse sentido, como quando, ainda primeiro terço do filme, Nick é tragado para o centro do mundo de loucura, aparências e altas expectativas que Amy vivia por conta de seus pais. Mas o exercício aqui é outro. É o de nos fazer mergulhar na vida desse casal e entender que o casamento guarda uma armadilha intrínseca e que funciona simultaneamente para os dois envolvidos.

Do ponto de vista cinematográfico fica bem claro que Fincher mira nos grandes trabalhos de Alfred Hitchcock. Não é por acaso que ele filma o sangue entrando pelo ralo do banheiro, evocando Psicose, clássico do mestre. O jogo de gato e rato – ainda que muito mais adulto em Garota Exemplar – lembra em muito as tramas de Um Corpo de Cai, Ladrão de Casaca e Intriga Internacional. Em todos eles, um homem precisa usar seus recursos para escapar de uma trama para a qual foi tragado por uma loira fatal. A diferença é que nesses trabalhos a mocinha quase sempre se revela uma vítima das circunstâncias.

Na superfície, Garota Exemplar faz um comentário sobre a loucura que é dividir a vida com uma pessoa que, no limite, é um completo estranho. E advoga que só a honestidade mais completa e profunda pode manter um casamento, ainda que possa destruir tudo o mais que estiver em volta.No fundo, porém, há uma bela e inteligente elegia ao feminismo.

Mas o que aparece aqui é uma faceta do feminismo real, não aquele imaginado por homens que acham que irão ter menos importância se não seguirem reafirmando seu orgulho hétero (ou algo que o valha). Exemplo maior disso está na cena em que Amy é questionada por um batalhão de homens e uma mulher. É uma passagem absolutamente brutal, em que a personagem manipula a todos com sua aparente fragilidade, a tal ponto em que ninguém coloca em cheque qualquer incogruência do seu relato: ela pode mentir descaradamente, afinal é uma mulher que passou a pouco por uma situação traumática.

É como se Gillian e Fincher se unissem para dizer que em um mundo de pensamento igualitário, como prega o feminismo, esse tipo de favorecimento não tem vez. O poder dessa declaração já é motivo o suficiente para valer o filme. Mas o espetáculo cinematográfico por conta da meticulosidade com que essa mensagem é construída, gerando tensão legítima em nós espectadores (é um thriller, afinal), torna Garota Exemplar não apenas imperdível. É um trabalho urgente.

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Luiz Gustavo Vilela

Luiz Gustavo Vilela é jornalista formado pela PUC-Minas, especialista em Comunicação e Cultura pela UTFPR, mestre e doutorando em Comunicação e Linguagens pela UTP. Entre 2011 e 2015 foi crítico de cinema no Portal POP.

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